sábado, 24 de abril de 2010










O ANTICRISTO, O ECOFEMINISMO E O GÊNERO PICTÓRICO NATUREZA-MORTA


Victor Costa da Silva


Lars Von Trier, cineasta dinamarquês, inserindo-se nas temáticas do feminismo, dá enfoque a tipos de mulheres, todas elas personagens centrais de seus filmes, que passam por uma série de violências morais e corporais por conta da hierarquização dos poderes simbólicos permeados nas sociedades machistas, como em diversos filmes de sua autoria e direção. É no filme o Anticristo que poderemos apreender, por exemplo, uma visão bem original da leitura do gênero pictórico natureza-morta, com a troca dos papéis e hierarquias.

O filme o Anticristo retrata a história de um casal que perde seu filho pequeno e encontra os demônios interiores no Éden. Seria, na verdade, um drama psicossexual, com apenas dois personagens (Ele, interpretado por Willen Dafoe, e Ela, encenada por Charlotte Gainsbourg).O filme começa em câmera ultra lenta, em preto e branco, com os dois personagens mantendo relações sexuais, enquanto o filho pequeno passeia pela casa e morre ao cair de uma janela.

A mãe, diante do ocorrido, sente-se culpada durante todo o filme e começa a ter visões de um provável momento em que o filho presencia a cena, e em que ela prefere continuar com o marido na sua experiência sublime do prazer sexual, ao invés de socorrê-lo: uma atitude de mãe desastrosa, condenável, individualista e pérfida.

Ela (a nova Eva), pesquisadora e historiadora, entra em depressão diante do acontecido, e o marido tenta tratá-la, já que é terapeuta. Ele, o novo Adão, tentando descobrir as coisas que mais aterrorizam a sua esposa, observa que é uma cabana longínqua de campo que o casal possui, denominada de Éden, repleta de bosques e árvores frondosas, o lugar que Ela tem mais medo. Ele tenta fazer o tratamento de sua esposa no Éden, ficando, assim, assegurado de que não se fará qualquer prática de caráter sexual até os resultados da terapia serem proveitosos. O restante de toda a história se passará nesta mesma cabana situada em uma ambientação que suscita o mundo natural aos moldes já mencionados da Ecocrítica.

Nessa natureza selvagem, Ela quer quebrar o juramento feito com o marido e, a qualquer custo, deseja se relacionar sexualmente com o mesmo. O desejo doentio de que essas práticas se concretizem seria visivelmente a metáfora do fruto proibido no Éden, já que Ela não poderia se relacionar com Ele, seu terapeuta, durante o tratamento. O casal é tomado por seus complexos pessoais através do contato com a natureza. A experiência do sublime, na mulher do filme, principalmente nas atividades sexuais, evidenciam, de certa forma, o impulso para a morte ou a tanatocracia que será advinda com as mutilações de diversas espécies: pernas perfuradas por brocas mutilação genital, ejaculações sangrentas e violências impiedosas cometidas não só contra o marido, mas consigo própria.

A Natureza, para Ela, é a Igreja do Diabo. A ideia de que a natureza é má é fundamental na construção do filme. A mulher, por consequência, é má, se associada à natureza, e é falsa em todas as ações, conclusões tiradas pela personagem do filme. De uma forma implícita, Ela nos mostra que a natureza é igual à mulher, e o homem é o causador dos impactos de sua vida, podendo perceber, assim, uma visão ecofeminista.

Mesmo promovendo atividades para ajudar a sua esposa a superar o trauma, o marido não será poupado por Ela. A mulher se culpa pela morte negligente da criança, e essa culpa é uma sensação do sublime que a condição existencial da mulher carrega por milênios, desde o pecado original. Vale ressaltar que no Éden primitivo a noção do pecado original se deu com o fruto proibido, a maçã. Já nessa nova releitura que o filme disponibiliza do Paraíso, o fruto proibido é a mulher, com sua inacabável culpa, que quer expurgar as suas aflições através da prática sexual.

Todas as passagens de mutilação sexual no Anticristo são realizadas com a iniciativa da mulher, uma vez que é só com o sangue jorrando, da forma mais tétrica e macabra, que ela poderá reconstruir e impor a imagem da mulher dominadora ao homem, vendo-o como um ser de sexo frágil, uma postura contundentemente feminista. Porém, enquanto a mulher enlouquece e se degenera, ávida por sexo, o homem se torna um ser calculista, tentando, assim, resolver a crise psicológica com o raciocínio.

Essa mulher precisa ser condenada, ela deve alçar voo à liberdade e tirar um pouco do seu mais íntimo esse sentimento de culpa que é perpetuado por gerações e gerações e que contaminam milhões de mulheres. Qual seria, pois, a condenação de uma pessoa que se culpa e se auto pune constantemente? Lars Von Trier, longe de ser um diretor misógino, vai condenar Ela através do estrangulamento feito por Ele no desfecho do filme: essa será a redenção da mulher bruxa, da mulher que se massacra diante de nossa sociedade extremamente machista.

Com a morte da mulher, Ele sobe uma montanha e encontra todas as mulheres mortas no Éden, libertando-as: eis um momento sublime de redenção do feminino. Assim, fica aberta a porta para que o homem lide com as mulheres reais tal como são, de igual para igual, sem resquícios de sentimento de culpa e ressentimentos que porventura ainda persistam na nossa sociedade patriarcal.

De uma forma geral, o que se percebe nos filmes desse cineasta é que as mulheres se comportam como verdadeiras petrificadoras de olhares e como apreciáveis medusas em relação ao universo masculino, que violenta os seus corpos e suas honras e dignidades, levando–se em consideração que esses discursos sexistas habitam os corpos das mulheres. Sendo assim, os corpos das mulheres falam gritantemente esses discursos velados e silenciados.

A mulher, em O Anticristo (2009), filme que se aproxima com um posicionamento ecofeminista, vive, como vimos, experiências as mais diversas de sublimação em um espaço que beira o mundo natural bíblico e, assumindo o papel da medusa, espacializa o homem em uma arte contundentemente temporal, colocando o corpo masculino em uma espécie de natureza-morta móvel, altamente passivo e recluso de seu mundo aventureiro, através do sentimento de culpa cristão, veiculado desde o Pecado Original, que avassala os comportamentos humanos até os dias de hoje.

A releitura do gênero da natureza-morta aqui poderia ser vista em uma grande metáfora da imobilidade do homem diante de tantos acontecimentos que permeiam o feminino e diante de sua atitude covarde de tentar silenciar a medusa, matando-a violentamente, assim como ocorre na narrativa mitológica.

A medusa seria o modelo, como diz o crítico literário Mitchel (1994), de uma interpretação da imagem realizada pelo feminino perigoso que persiste em silenciar a voz masculina e impor o seu olhar observador. Seria, pois, o olhar de que o homem é o grande causador dos impactos na vida da mulher e o olhar de que o sentimento de culpa que avassala a existência feminina deve ser expurgado diante de vários castigos que precisam ser cometidos contra ele, o que é bem perceptível no filme em questão.

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